O sol raiou sobre a terceira maior cidade do país, Salvador, e seu povo sabe que agora poderia simbolicamente rasgar em pedaços miúdos a Constituição do Brasil. Ao povo soteropolitano, ontem, dia 20 de junho de 2013, que não sairá da memória daquele que saiu às ruas em paz, mas que teve que largar seus cartazes de papel para engolir as balas de borracha da Polícia, foi negado sumariamente o direito à livre manifestação. Erro meu, crasso talvez, pensar que só hoje a Constituição poderia ser rasgada – quanta bobagem. A favela já convive há muito com a carta de boas intenções anunciadas pelos direitos fundamentais do homem. Vi ainda frases nas redes sociais apontando que o massacre no Dique, na Avenida Sete, Joana Angélica, Campo Grande, e Ondina, representam a ação policial que saiu da periferia para deixar aquele abraço do Estado pra crianças, adolescentes, adultos e idosos de diversos estratos sociais.
Quando os primeiros protestos
despontaram em São Paulo, inicialmente pelo reajuste da tarifa do ônibus, questionava
sempre em que passo e como as coisas saíam do controle, como a barbárie se
iniciava e tudo ruía. O que meus olhos
não alcançaram nas ruas de São Paulo ou pela TV e suas coberturas duvidosas,
meu coração soube captar bem. Uma manifestação plural e pacífica que saiu do Campo
Grande com o sol a pino sob nós, seguiu em marcha firme numa missão de resgate
e conquista de direitos. Uma ideia na cabeça, no peito o típico ufanismo exaltado
em tempos de copa vertido na direção da ordem e do progresso, lá ninguém desembraiou
espadas em riste. Carregamos sim gritos barulhentos em nossas mãos na
perenidade silente dos cartazes. A mão do Estado, que nunca está vazia, puxou o
gatilho, e bateu palma para nós, pra cada uma delas uma bomba sobre nossas
cabeças.
Senti na pele o terror daqueles
que estão no Poder. Manter o status quo é o objetivo, e pra isso é preciso que
se faça silêncio. O povo não pode ir às ruas e dizer que se cansou. Falaram que
o país está vomitando. É verdade. A ação policial, ao contrário da informação
propalada em diversos veículos da imprensa, não se verteu para proteção de
pessoas e do patrimônio público, pelo contrário, ontem o medo da polícia era
maior que o do ladrão, digo, o ladrão que toma seu celular e seu relógio, não o
patrão do policial que te alvejou - contra esse gritamos. Na região dos Barris,
a polícia arquitetou uma emboscada para os manifestantes, permitindo a passagem
por determinado perímetro para posteriormente atingi-los com os artefatos
disponíveis. Em uma palavra: covardia (cabe numa palavra só?).
Houve dispersão, correria, confronto,
um sentimento de impotência que vinha se permeando de raiva, potencializando o
pior dos instintos humanos, e vi algumas cenas se repetirem. Vi a liberdade do
povo espezinhada pelos interesses da FIFA diante de tremenda violência, vi
também no centro de Salvador o que outrora acompanhei de casa nas fotografias e
relatos dos protestos no Sudeste do país. A desconformidade perante a falta de proporcionalidade
e razão da ação policial conduziu a massa, irascível que é, ao confronto
direto, à destruição, e mesmo que nada se justifique ou se anule
reciprocamente, é isso que acontece quando se tenta calar a voz e o ideal de um povo empunhando armas. Não
incluo nesse rol a súcia de malfeitores e sevandijas à margem do movimento que
saíram tão somente para roubar, destruir e conspurcar a passeata.
Ao caminhar com parte dos
manifestantes para a Ondina, de algum modo foi acalentador assistir pessoas em
suas casas piscando as luzes dos seus apartamentos denotando apoio ao movimento,
mesmo que não tenham ido às ruas, do mesmo modo, foi bonito ver a manifestação
seguir e crescer ao longo do caminho, ganhando novos asseclas, sem vandalismo
ou violência (sem a presença em massa da polícia até a Avenida Oceânica). No
entanto, durante esse percurso também acompanhei a expressão, o desconforto e a
represália de civis que nos hostilizavam como se estivessem alheios a nossa causa
e não vivessem no mesmo país que poderia ter financiado as últimas três Copas
do Mundo com o valor gasto para realizar a nossa. Pessoas que aparentemente não
encaravam a violência urbana tal e qual como é e como eu encaro, ou que
desconhecessem a situação do nosso transmorte público, hospitais, escolas etc.
No desfecho desta caminhada
pacífica, por volta das 22 hrs, quando havia uma concentração considerável de
pessoas entre a Avenida Oceânica e a Ademar de Barros na Ondina, ocorre o que
costumamos denominar de gota d’agua quando o
limite do absurdo se apresenta inominável. Policiais da Tropa de Choque
avançaram sobre manifestantes desarrazoadamente com toda truculência e ódio com
muita rapidez, houve inclusive uma bomba da polícia dentro de um ônibus,
causando pânico nos passageiros. O recado foi dado: Vocês podem bater sem
machucar, não saiam às ruas, manifestação só nas redes sociais, mas se
saírem... lembrem disso. Lembraremos, e ainda há fé que essa recordação
reforçará a força que só contempla a união dos cidadãos.
A polícia continuará a
salvaguardar interesses que não lhe comunicam, nem a mim. A FIFA, o Estado, empreiteiros
e todos os outros que auferiram vantagens ou lucros da Copa estão numa ciranda
solitária ao redor do povo brasileiro, jogando uma tinta nova sobre velhas estruturas
de poder para que apeteçam o olhar dos incautos, escondendo mazelas, oprimindo
a voz de quem não quer calar. Não quer e não vai. Somos maiores que eles, o
rastro de pólvora espalhado em nosso território tende a acabar com a
brincadeira antes da hora. Sejamos fortes e obstinados para dar uma resposta a
tanta barbárie.
Um dia após as manifestações não há outro assunto nas redes sociais: Depoimentos, fotos, reportagens, vídeos.
Alguns se destacam mais. Há aqueles que não foram às ruas, mas ficaram ansiosos
para acompanhar o noticiário, concluindo posteriormente que “a polícia estava cumprindo
ordens e fazendo o trabalho deles ”(sic), outros ainda pensam que “não há
motivos para o povo ir às ruas”(sic), acompanhei também o comentário de um
amigo fazendo referência ao tempo do PFL, afirmando que não há como comparar a
repressão atual (no governo esquerdista do PT representado por Jaques Wagner)
com a repressão daquele tempo. Foi então que me recordei de uma aula de
história na oitava série sobre o Brasil Império: “Nada mais conservador que um
liberal no poder. Nada mais liberal que um conservador na oposição”. São faces
da mesma moeda com seus pequenos matizes.
Não permita que calem sua voz.
Por Marcos Araújo